segunda-feira, 13 de maio de 2013

a saudade diminuiu a cidade
e aumentou o oceano Atlântico
tirou horas do meu dia
desapareceu com a minha noite
rasgou cadernos inteiros
poemas, estudos, cálculos, listas
anotações em ficheiros
transformou a minha casa em um quarto e um banheiro
a saudade escondeu roupas do armário
livros das estantes
clareou minha pele e esticou meus cabelos
comeu quilos do meu corpo
e da geladeira
o pé da mesa e a cabeceira
a saudade roubou meu emprego
meu sono
livrou-me do agora e do medo
sequestrou minha família
afastou meus amigos - a saudade só lembra de nós
apagou minha infância
desbotou os retratos

trouxe um mar de palavras e levou minha voz

segunda-feira, 22 de abril de 2013

abril

a espera é uma pera
verde 
na fruteira

paciente e imperturbável
sob o vôo de uma abelha

pura cica 
carne dura e agridoce

as frutas em abril tem gosto de saudade

me gustaría escribir en tu piel, pero no tengo más que este muro

quando eu vi sua pele,
quis fazer de superfície

a imagino com frequência
em um mar de cobertores

a um oceano daqui

moldando diferentes formas
enquanto dorme

encolhendo no frio
esparramando durante o sono

acomodando nas roupas
e saindo para trabalhar

a imagino solta, virando água no chuveiro

com picadas de mosquito
deixando crescer os cabelos

penso nela como papel
absorvendo poemas que eu escreveria

se você estivesse agora
a três praias daqui

sábado, 26 de janeiro de 2013

lady day


a minha gata está sempre no cio
mia rouca nas paredes da casa
as mesmas histórias
não adianta mudar o disco
seu homem a abandonou
ela foi uma tola
chorou, chorou
fez um pedido à lua
abanou o rabo
ronronou, ronronou
nada  disso adiantou
já escutei todas as suas canções
mas ele ainda não voltou
a minha gata vive uma tragédia
não é fácil encontrar o amor
Is that all you really want?, ela pergunta
sua voz é um garra
e me arranha por dentro
seu miado, um lamento
em tardes chuvosas como esta
eu a entendo
enquanto seus pelos escuros
fazem cócegas no coração
às vezes passo dias sem cortar os pelos
deixo crescerem longos e cheios
depois penteio distraída
por entre os dedos, como um carinho recebido

cofiar é o verbo, para ser mais preciso

uma barba invertida
deixo ficar quase comprida
só para tirar tudo depois

corto as unhas
uma por uma
as deixo no sabugo

conto o tempo em grandeza de nudez
o tamanho dos cabelos
e cor da cicatriz

espero o suor evaporar embaixo do ventilador
tomo banho outra vez

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

cinema

Voyeur Amoroso, Rubens Gerschman



embaixo da marquise os alunos
ficam juntinhos
(que saudades desse uniforme)
parece mais farra do que medo de se molhar




à noite na chuva,
tudo tem cor de cinema oriental
neon prismático
sobreposto
no rosto de quem passa
cada farol, letreiro e sinal
se decompõe em partículas caleidoscópicas
brilha como glitter
galáxias
na janela do ônibus
os pedestres flutuam apressados
sobre uma imensa Lagoa
refletindo
o avesso de quem são
repetidas vezes
nas gotículas da vidraça
nos abismos de luz abertos no chão
um casal se beijafazem charme um com outro
brincam 
de estar apaixonados

existe muito romance quando se olha para os lados


pergunta

e se te dissessem Arnaldo,
que você não iria morrer de dor?
ao invés disso
renasceria
são em um mundo doente
completamente consciente
do que é o amor?

terça-feira, 18 de setembro de 2012

estante


as prateleiras guardam tempos
como pequenos museus
envolvem em poeira
passado
objetos inanimados
bonecas, missangas, porcelanas
e dentes de leite,
tufos de cabelo em papéis
amarelados,
cemitério de quem fui

assoviando
o aspirador de pó
suga a morte da estante
cacarecos, badulaques
em sacos pretos muito grandes
assim se reduz antigos instantes

janela aberta, rajada de vento
as paredes respiram
a promessa dos espaços vazios









segunda-feira, 17 de setembro de 2012


na pracinha onde eu cresci
(tomei sorvete
quebrei um dente
e chorei por outro amor)
você me deixou
no chão de pedra portuguesa
sentadinhos em volta da mesa
de xadrez
um chororô tão grande
parecia tristeza
não demorou muito e passou
até hoje ainda não te agradeci.

domingo, 22 de julho de 2012

amarelinha


volta e meia
dou uma volta inteira
no meu caracol
volto
dentro da concha
cada giro completo
aumenta o casco
da minha espiral

me limo no silêncio escorregadio das pedras

mundo abismo
entre a lesma
e o espaço sideral
volto à casa de minha infância
deslizo no eterno das paredes
e a cada volta
vibra em mim o mantra
as cordas do relógio da sala
sigo a rota
do tarot de minha avó
e risco de giz amarelinha
na calçada pulo as pedras
um pé no chão e o outro não
o céu é a chegada
descanso pra voltar